Com um instrumental calmo, coberto de sons de chuva ao fundo e um piano que hipnotiza o ouvinte, Rain é uma das grandiosas canções presentes no álbum Dark & Wild, do grupo BTS. A melancolia se estende por toda a música, de um jeito inebriante e entorpecente que, particularmente, nos lembra dos famosos lo-fi dessa geração. O instrumental, claro, casa com toda a temática da canção, que reflete um dia chuvoso em Seul. Outra questão que vale levantar antes da análise propriamente dita, trata-se do mencionado por RM na entrevista para o “BE-hind Story” (45:01), o qual disse que, no processo inicial de escrita das canções, uma de suas estratégias é pensar numa palavra-chave como tema musical e desenvolver a canção em cima dela. Assim, é possível observar esta ideia aqui, já que a chuva é o elemento principal.
Análise
"(A cor escura de um dia chuvoso em Seul)
Os carros que correm, os guarda-chuvas que se movem por todo lugar
Está nublado e o ar é limpo
(A chuva para e a reflexão na poça d’água)
Com um claro fundo cinza, por que estou aqui de pé?
Eu não sei se tenho muitos pensamentos ou nenhum"
De início, somos apresentados a um típico cenário urbano num dia de chuva, que nos fazem imaginá-lo. A escolha de palavras opera para a construção dessas imagens: “os carros que correm”, “os guarda-chuvas que se movem”, “a reflexão na poça d’água” e alguém que está olhando para esse cenário, de pé. É válido que o leitor/ouvinte não apenas sinta a melancolia que, já no início, é abordada pelo questionamento trazido por RM, mas que também perceba esse estranho clima pairar em uma cidade que não para.
Quando pensa-se em chuva, em cinza, logo somos levados a absorver essa atmosfera mais triste, introspectiva, e que, ao escolher esses elementos como parte do cenário, já somos captados pelo clima da canção. Essa questão também é o que ocorre com a/s pessoa/s enunciadas na música.
"Eu acordo quando lá fora está prestes a clarear
Eu escovo meu cabelo com minhas mãos exaustas
O bloco de notas com a música que eu não consegui completar ontem à noite
“Eu terminarei isso hoje” enquanto fecho meus olhos e solto um suspiro
Que desculpa eu posso dar? Eu tentarei inventar algo
Está inacabado de qualquer maneira então apenas inventarei alguma coisa"
Nessa primeira parte do rap de RM, temos uma narrativa, isto é, uma série de acontecimentos que conseguimos imaginar. Nela, é representado o cansaço do artista que vive num cenário de produção musical e que, portanto, seria um desabafo. Pensando na pressão que os artistas passam constantemente para a criação de novos hits, vemos que esses trechos não se distanciam em nada da realidade.
"Então eu viro meus olhos para a janela e tudo parece cinza
Cidade cinza com prédios cinzas
Estradas cinzas com chuva cinza
Tudo nesse mundo é devagar
Meu dongsaeng que acordou continua se embolando em suas palavras
Eu continuo abrindo e fechando a geladeira que não tem culpa
Com o desconhecido sentimento vazio que passa por mim"
Na segunda parte do rap de RM, para os já conhecedores da canção-título da mixtape MONO, forever rain, sabe-se que a chuva e a disposição desse cenário urbano são fatores importantes na construção de sua canção. Rain, por essa mesma linha, apresenta essa fixação de RM por esse cenário melancólico. Ao olhar para fora e observar que tudo é cinza, não é apenas porque está nublado e as cores que compõem estes elementos são predominantemente cinzas, mas também é porque tal cor traz essa noção de vazio e tristeza. Daí, ele olha para dentro de novo e nos descreve outra série de ações cotidianas que, para ele, reforçam o vazio o qual, também, está dentro de seu lar.
"Eu penso que deveria apenas ir lá fora
Sem sequer um guarda-chuva
Eu posso ouvir claramente a chuva atingindo a terra
Eu sorrio, essa é a melhor música de fundo
Como um cara louco, eu começo a cantarolar
Eu me pergunto que horas são"
Na última parte do seu rap, há uma leve mudança que também nos remete à forever rain: de ser banhado pela chuva e, consequentemente, pelas sensações que ela nos proporciona. Como uma pessoa que admira os elementos naturais, RM nos reforça ainda mais seu amor por eles devido a sua sensibilidade para com a chuva - ou o som dela. Nesse sentido, notamos uma experiência pessoal presente na canção, isto é, ele se coloca nela.
Com isso, seguimos para o refrão:
"A cor escura de um dia chuvoso em Seul
Eu ainda não consigo dormir enquanto desapareço
A chuva para e a reflexão na poça d’água
Eu me vejo parecendo mais miserável hoje"
Novamente somos imergidos no cenário melancólico de dia nublado numa cidade grande e, além disso, de como essa tristeza “adentra” nessa pessoa que, por exemplo, se vê mais miserável nesse dia em específico. No próximo trecho, que inicia os versos de SUGA, por exemplo, vemos explicitamente a chuva molhando - metaforicamente - a pessoa da música:
“É uma noite chuvosa, a chuva bate à minha janela, atinge meu coração”
"Com meus ombros doloridos, eu olho para meu telefone e vejo uma mensagem, “Como tem estado esses dias?”
A mensagem do meu amigo sempre me deixa emotivo
Enquanto inalo o cheiro da chuva molhada, eu estico os braços e vou ao banheiro"
Agora sobre a visão de SUGA, além de darmos início a uma nova série de acontecimentos, tem-se questões pessoais abordadas aqui e que, novamente, registram as experiências dos artistas. Os ombros doloridos, como sabem os ARMYs, fazem menção ao estado de saúde de Yoongi e, além disso, tem-se também a mensagem do amigo que, juntas, marcam essas experiências do rapper. Assim, afetado pela chuva, ele se derrama em elementos melancólicos que casam com a vibe da canção.
"Então me cumprimento, meio adormecido no espelho
Não vou me encontrar com ninguém, mas eu tomo um longo banho
Ainda chove do lado de fora do dormitório
Não tenho lugar exato para ir mas eu pego meu guarda-chuva
E caminho lá fora sem um plano"
Indo pelo mesmo caminho que RM toma em seus versos, a pessoa dessa nova perspectiva também decide ir para fora e ser molhada pela chuva, sem rumo, contagiada com aqueles sentimentos.
"Como se a chuva tivesse que provar sua existência, meus sapatos ficam sujos
Eu sou alguém que tenha marcado sua existência para você, como a chuva?
Se não, eu sou apenas alguém que veio e foi como um relâmpago?"
Finalizando seus trechos, SUGA lança de algumas metáforas. A primeira, em uma perspectiva pessoal, é de como a chuva enquanto um elemento melancólico mesmo, deixa suas marcas nos indivíduos. A representação dos sapatos sujos, por exemplo, trata-se dessa ideia. A segunda seria a associação do relâmpago como algo passageiro em comparação com as marcas que a chuva pode deixar. Então, em seus versos, ele se direciona para alguém, na expectativa de ser uma pessoa marcante para a outra, tal como a chuva é nesse momento. Na linha de seus raps, há uma possibilidade dessa pessoa ser o amigo de quem recebeu a mensagem.
[refrão]
Na última sequência de raps, J-HOPE entra:
"Eu me levanto e quando me sinto pesado, olho pela janela
Como se soubesse como meu corpo está, a chuva está caindo
Enquanto olho para as gotas de chuva escorrendo na janela, senti que
São como as lágrimas que escorreram pelo meu coração
Como esse sentimento estranho, eu olho para fora e parece com a minha situação"
Aqui, ainda mais presente do que nos outros versos, há uma fusão explícita entre a chuva e o estado de espírito da pessoa da nova perspectiva que é lançada, numa espécie de: "eu sou a chuva", "eu sou essa melancolia". No verso 2, no verso 4 / 5 e no 6, por exemplo, vemos como a chuva e esse estado triste se fundem para a construção da ideia trazida por J-HOPE.
"A chuva que cai como uma melodia faz tudo parecer lento
Eu me arrumo e saio, abrindo o guarda-chuva que estava franzido como minha expressão
Enquanto ando, no momento que escuto a chuva
Eu me pergunto por quem essa chuva está caindo
O som que atinge esse solitário cimento cinza
Venha mais devagar"
E, para completar a sessão de pessoas saindo na chuva, J-HOPE também propõe essa imersão nesse clima. Outro ponto, trazido no verso 4, por mais que haja um questionamento, podemos pensar que ele acha que a chuva cai por ele, já que, no primeiro momento de seu rap, há uma fusão do seu estado de espírito e a chuva que cai. Além disso, vale mostrar também que o som da chuva é um elemento muito presente nesses trechos e nos trechos já comentados, sendo destaque daquilo que a sensibilidade do artista consegue captar - e que também está presente no instrumental.
[refrão]
"Mesmo quando a chuva para, quando as nuvens vão embora
Eu fico aqui de pé da mesma maneira
Sem dizer nada, olhando para o mundo
Lá, um não tão bonito eu está olhando para mim mesmo"
Concluindo a canção, com o fim da chuva, há uma permanência dos sentimentos de vazio e tristeza destacados durante toda a música, mostrando que essas sensações fazem parte do cotidiano das pessoas. E que a chuva apenas tem essa função de nos fazer mergulhar nesses questionamentos e sentimentos de uma forma um pouco mais profunda do que fazemos no nosso dia a dia. Por fim, eles encerram a canção, ainda de pé diante do cenário, mostrando a face triste - ou seja, o “eu não bonito” - que olha para esse eu afetado pelas condições melancólicas que a chuva trouxe e se foi, mas deixou, ainda, essa sensação. Há várias formas de se interpretar esse último trecho, pois o mundo (o lá) também pode ser o EU, enquanto artista, que se apresenta para as outras pessoas - e é tratado como “um não bonito” porque precisa se moldar para esse mundo - em contraste com o eu verdadeiro, a minha parte mais profunda, afetada por essas sensações.
Portanto, é importante lembrar, pois, que toda a canção vai muito mais além de retratar apenas um cenário, uma condição climática. Ela também representa as consequências emocionais, em forma de desabafo, que a chuva derrama sobre os artistas.